O Espelho de Cristal
O sino na porta, causou um frisson infantil em seus sentidos. Procurava por um presente e imaginou encontrar algo em conta naquele brechó com cara de bagunçado. Imaginou que se fosse barato como os sebos em que costumava comprar livros, estaria salva. Já se sentia meio perdida e cansada de andar na zona sul onde tudo era mais caro. O pessoal da faculdade tinha marcado o encontro de amigo secreto naquele bairro perto de suas casas, num bar famoso. Ela achava no mínimo estranho que mesmo podendo pagar uma universidade particular eles preferissem cursar a pública, que ficava depois do túnel bem ao lado de sua casa no subúrbio. O som cintilante foi um alívio para os pensamentos desagradáveis.
Logo surgiu uma senhora, vindo dos fundos. Usava um coque de bailarina e vestia um Ives Saint Laurent vintage, na verdade a cópia de um original puído, que ficava guardado como jóia no closet. Devia ter sido alta e esguia, mas os anos haviam craquelado seus ossos. Conforme andava, escorava-se nas mesas apinhadas de bibelôs, parecendo mais uma boneca quebrada. Recebeu a jovem cliente com empolgação exagerada:
- Boa noite, minha querida! O que você procura?
- Boa noite, procuro um presente para uma amiga. Respondeu Celia timidamente.
- Uma amiga, que ótimo! Sabe do que ela gosta?
- Hum... Não sei bem. Preciso de uma ajuda.
- Ajuda, que ótimo! Venha comigo... Uma moça de bom gosto vai adorar o que tenho por aqui...
Enveredou pelo comprido salão apinhado de objetos. Longe da porta e sem nenhuma janela, a iluminação era artificial e fraca. A penumbra acentuava o brilho dos cristais e das pedrarias.
Contos Levemente Fantásticos
- Veja este lindo conjunto de cristal Bacharach... Uma peça fina para um jantar elegante. Nesse suporte colocamos o gelo, sobre ele vai essa peça menor com o caviar. Acompanha uma bela colherzinha de madrepérola, que não deixa as ovas oxidarem... Que tal?
A senhora segurava o artefato cuidadosamente com as mãos esquálidas, de unhas muito bem pintadas numa cor que lembrava doce de leite e, sabe-se lá porque, conferia dignidade aos dedos nus e descarnados.
A garota ouvia aquilo um tanto sem jeito, com certeza não estava dentro de suas posses. Mas pensou que seria grosseria interromper uma distinta senhora, que falava sobre cristais, madrepérola, caviar, oxidação... Para falar sobre dinheiro.
- Então, não é uma jóia? Insistiu a lojista. Como você disse que se chama mesmo?
A jovem pouco acostumada a tantas mesuras, morria de vergonha por seu estômago, que roncava alto. Não tinha almoçado e a conversa sobre caviar levava sua fome às alturas, ou profundezas. Nunca havia provado a iguaria mencionada e imaginou que tivesse gosto de peixe. Passara a manhã toda sonhando em comer um bolinho de bacalhau, tinha pulado o almoço mas quando passou na adega do centro o quitute já havia acabado. Então deixou para lanchar mais tarde, no famoso boteco, onde a esperavam para a entrega dos presentes.
A senhora fingiu não ouvir os ácidos gástricos que corroíam a garota e repetiu a pergunta:
- Como é mesmo o seu nome?
- Ah, desculpe moça, me chamo Célia...
- Ótimo, Célia. Meu nome é Leonor Machado. Então, o que achou da peça? Insistiu, parecendo não perceber a falta de sentido, em oferecer tal artefato a uma garota como Célia. Uma senhora com tanto traquejo não conseguia mais distinguir a posição social dos clientes. Quem sabe fizesse de propósito por puro sadismo, para constrangê-la? - era o que pensava Célia.
Até bem pouco Leonor havia sido exímia em adivinhar. Costumava apostar, com a falecida sócia, qual seria a quantia gasta por cada um que entrava pela porta e não raro acertava a profissão dos clientes também. Agora enxergava em Célia uma advogada de sucesso e, curiosamente, a menina era estudante de Direito. Teria Leonor Machado passado de observadora sagaz a uma sábia adivinha, para sorte de Célia?
Ou teria a solidão amansado seu espírito crítico, tornando-a sedenta por um bocadinho de companhia, de quem quer que fosse?
- Bem, sabe, a senhora me desculpe - começou Célia - eu estava pensando em uma lembrancinha apenas, ela não é uma amiga mesmo, é uma conhecida... Na verdade é um presente de amigo secreto da faculdade, e...
- Ah, querida! Então, venha até aqui. E afundou no longo corredor, sumindo atrás de um lustre de pingentes gigantesco, que pendia do teto muito baixo.
- Olhe isto! Gritou a senhora.
Mas Célia divagava em frente a uma cristaleira, distraída com uma pulseira de continhas que imaginava poder comprar.
- Hei, garota, onde você está?
- Desculpe, estou chegando, é que ali atrás tem uma pulseira que... Estancou.
Viu Leonor Machado apontando alegremente para um espelho de parede, com moldura cravejada de pedras cintilantes. Toda empertigada, remoçara uns duzentos anos. A jovem pensou se a velhota não estaria um pouco gagá, aquele objeto devia valer uma pequena fortuna. Irritada com a falta de noção da senhora, a fome corroendo-a e o ar sufocante do fundo da loja, começou a passar mal.
- Querida, acho que você não está bem, não é? Ficou muito pálida e seus olhos estão tão fundos. Aqui é abafado, eu sei. Sente-se e deixe-me pegar um copo de água fresca, é só um instante!
Numa cadeira Art déco desconfortável, Leonor deixou Célia que ficou um longo tempo olhando para o espelho, imaginando onde estaria aquela maluca, que desaparecera com a tal água fresca?
- Aqui está! Beba, menina, vai sentir-se melhor.
Finalmente! Pensou Célia. Bebeu trêmula e fechou os olhos, sentindo-se muito fraca.
O sino da porta tilintou e a senhora pediu licença para atender um possível novo cliente.
- Mas a essa hora? Saiu resmungando e se escorando - Eu já deveria ter fechado a loja…
O espelho chamava a atenção, era verdadeiramente fabuloso.
Atraída pela beleza da moldura, Celia levantou-se e passou a mão pelas bordas cravejadas. Se viu refletida e não sentiu o velho desconforto que sempre acompanhava seu reflexo. Os brilhos das pedras, cintilavam em seu rosto como vagalumes, suavizando a expressão e dando um ar mágico a sua imagem. Sentiu-se bela, pela primeira vez.
Queria comprá-lo, mesmo que fosse caro. Quem sabe a senhora não fizesse à prestação pra ela? Mas e a amiga secreta? Bem, poderia dizer à colega que fora assaltada no ônibus e que entregaria o presente depois. Como era o último dia de aula, não mais daria droga de presente algum...
Se não tivesse dinheiro pra comprá-lo, pediria à dona permissão para mirá-lo, ao menos alguns minutos por semana. Uma senhorinha tão bondosa, não seria capaz de recusar. Pagaria um aluguel por esse prazer, se necessário. E quem sabe a loja não estivesse precisando de uma funcionária? Deixaria o trabalho estafante e mal pago de operadora de telemarketing, para ajudar essa doce criatura.
Sua cabeça rodava com mais um milhão de sonhos. Era como se não pudesse mais viver sem aquele objeto.
Havia passado muito tempo ali e percebeu que devia ter perdido a hora. Onde estaria Dona Leonor? Encontrou-a caída debaixo do balcão do caixa. Abaixou-se para ver melhor e sufocou um grito.
Leonor Machado jazia numa posição estranha, sobre uma poça de sangue. O caixa aberto e vazio, mostrava que havia ocorrido um latrocínio enquanto Célia alisava o espelho.
Sem saber o que fazer, com medo de ser acusada, correu para a saída em fuga. O tilintar do sino fez com que se lembrasse do espelho... Voltou e trancou a porta… Foi com o coração na boca até o fundo da loja, enrolou seu objeto de desejo na jaqueta jeans, pegou um par de brincos qualquer e saiu, pelo canto mais escuro da rua.
Ao chegar no bar a entrega de presentes já havia terminado. Encontrou a amiga secreta numa mesa sozinha. Entregou os brincos e pediu desculpas, por não ter tido tempo de embrulhar.
- Esses brincos não são roubados? Pergunta a presenteada com cara de nojo.
- Como você sa… Como assim?!
- São ou não roubados?
Celia, confusa, se vê de volta na loja diante do espelho.
- Não são, não! Minha avó me deu pra vender! Se não vai comprar, devolva logo, sua velha chata! Gritava uma voz esganiçada de adolescente.
- São de Gustava Mendonça Arantes, minha cliente! Veja o certificado, veja, ela comprou aqui comigo! E eu te conheço desde que você nasceu, espertinho. Vou ligar pra saber se ela realmente lhe deu pra vender.
- Eu te mato, velha intrometida. Larga esse telefone!
No fundo da loja Célia se encolhe, ouve o gemido de Leonor, o barulho da caixa registradora, sons abafados, o sino da porta… Silêncio.
Aos poucos sai detrás do biombo onde se escondera.
Encontra a senhora no chão, exatamente do mesmo modo que há algum tempo pensara ter encontrado.
Teria dormido? Tivera um sonho premonitório? Não havia tempo para descobrir.
Dessa vez não corre assustada para a porta, vai direto ao fundo da loja, pega o espelho, embrulha-o num xale de seda, tirando os preços de ambos. Escolhe com cuidado uma pulseira e coloca-a numa caixinha de presentes, que encontra na prateleira ao lado da pobre bailarina craquelada. Lembra-se de sublinhar, com um pouco do sangue, o nome de Gustava Mendonça Arantes, que está na agenda aberta sobre o balcão.
Chegando ao bar a entrega dos presentes está começando. No meio de uma mesa cheia, a amiga levanta o copo na direção de Celia e diz “tin tin”. Ou seria tilin?
Edna Lopes